Não diga que eu não avisei

Não tenho como contar as vezes em que usei a desculpa da correria para justificar algum cuidado não tomado, alguma visita não feita ou algum carinho não entregue. Sempre ela. Temos vidas corridas, dias cheios, semanas intensas e só se sabe que a cada ano tudo passa ainda mais e mais rápido.

Quando um mês leva um pouco mais de tempo a passar, reclamamos e dizemos que janeiro teve 82 dias. Que bom se fosse verdade. Imagina a quantidade de coisas que poderíamos ter feito num janeiro desses!

Agora, estamos presos num eterno domingo. Quem está trabalhando até mais do que costumava ou está enlouquecendo com a rotina familiar se sente preso a um longo dia que parece sem fim.

Me faz lembrar daquele filme em que o protagonista acordava sempre no mesmo dia e no mesmo horário. Nunca passava a folhinha do calendário. Vivia aquele como se fosse um novo dia qualquer apesar de tudo se repetir a exaustão. E de novo.

A grande diferença para nossa quarentena é que o personagem não tinha a lembrança de já ter vivido aquelas 24 horas.

Hoje, acordamos no mesmo dia há três semanas com a consciência de que o tempo está passando, mas ignorantes em relação ao que virá amanhã. E depois.

É aqui que gostaria de começar este texto: não sabemos o que virá, mas já entendemos que o que passou, passou.

Se eu fosse um grande estudioso de transformações das sociedades, vocês teriam mais facilidade para acreditar em mim quando eu afirmasse que nada será como antes. Mesmo sendo só mais um no isolamento, arriscarei: nada será como antes porque o para sempre acabou.

Entendeu que, agora, usar a desculpa da correria ou da pressa para justificar qualquer coisa nos faz soar ridículos?

Nos faz perceber que não aproveitamos todo o tempo possível ao lado de quem importa, deixamos de sentir o sabor de tantos brigadeiros, ignoramos amarelinhas riscadas com giz nas calçadas, fizemos bolos de cenoura com cobertura de chocolate sem ao menos espiar o bolo crescer no forno. Dizemos tantos “uhuns” para quem queria apenas nosso olhar.

Baixamos aplicativos de mais. Olhamos no olho de menos.

Se estamos neste planeta para melhorar um pouquinho a cada dia, chegou nossa grande oportunidade. É urgente entender que precisamos sair disso tudo melhor do que entramos nesse pandemônio.

Se você está super confortável com o que está acontecendo, só esperando o tempo passar, me perdoa, preciso dizer: é como se você estivesse naquele filme acordando diariamente sem utilidade alguma.

Desperta! Estamos diferentes de ontem, só você não está mudando. Não é fácil, em alguns momentos será desconfortável, mas assim é a evolução.

Isolados, nos resta olhar para o fundamental. As distrações acabaram. Não há correria. Não te engana. Não foge. Vai sem pressa para dentro de ti. É um caminho sem volta.

É aí dentro que está a cura de muitos dos males que se atribui ao cosmos, ao mundo injusto, à inveja, aos outros. Assume tua responsabilidade pelos atos que vêm de ti e renasce.

Olha em volta e sente o que o outro está precisando. E entende que está ao teu alcance a cura de muitos. A empatia, aquela de verdade, que te coloca realmente próximo a alguém que não seja teu umbigo, essa sim, deixará de ser um opcional.

Caiu no nosso colo esta dolorida oportunidade de repensar o amanhã. Abracemos ela com força.

Algumas coisas deixarão de fazer sentido. Várias das tuas escolhas ganharão novo significado. Antigos valores poderão ser dispensados. Estou te dizendo, é a grande desculpa de que tantos precisávamos para começar uma vida mais honesta, mais generosa. Com a gente mesmo. Porque não há desonestidade maior do que mentir para nós mesmos.

Então, meu amigo, minha amiga: eu avisei. Por falta de alerta não foi.

Ou mudamos ou deixaremos de fazer sentido para tantos. Pior: podemos deixar de fazer sentido para nós mesmos e seguir correndo em vão nesse novo mundo que virá.

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