Bilhão

Entendi aos 8 anos que eu era diferente. Da pior forma.

Estávamos na missa, minha mãe, eu e uma amiga da família com seu filho, Roberto, um adolescente com síndrome de Down.

Ainda escuto o ranger dos bancos de madeira iluminados pela luz difusa do sol que entrava através dos vitrais da igreja. O cheiro da parafina das velas queimando segue encrustado na minha memória junto com a frase proferida por essa amiga como golpe dilacerante: “todos temos nossa cruz, Inês.”

Inês era minha mãe. A cruz sou eu.

Estava decretado. Eu era um peso, uma chaga. Um sangramento a céu aberto. Sem volta, para a vida toda. Assim como o filho dela.
Eu tinha 8 anos. O suficiente para me ferir com suas palavras de parafina fervente. Crianças de 8 anos sentem, minha senhora. Seu filho também, até mais do que eu.

Lembro ainda hoje do olhar de minha mãe naquele momento. A gana entre me defender e comprar briga com uma velha amiga ou calar, mais uma vez, e fingirmos todos que nada aconteceu naquele templo de acolhimento e paz. Chegou em casa irritada e falou alguma coisa sobre ser o Roberto, na verdade, a carregar uma cruz, sua mãe. Me senti acolhido por minha mãe como poucas vezes antes.

Esse foi o mundo em que eu nasci e no qual nós dois, você e eu, ainda vivemos. Ter uma síndrome era uma cruz. Minha deficiência, outra.

De lá para cá, algo mudou.

Crianças com autismo não ficam mais reclusas em suas casas como se não existissem; cadeirantes circulam por shoppings; pessoas com paralisia cerebral se apresentam em palcos; pais sem uma mão escrevem textos e passeiam orgulhosos com seus filhos pelo mundo.

O que ainda não mudou é o fato de sermos tratados como minoria.

Ainda colhemos olhares de pena. Ainda ouvimos crueldades disfarçadas de carinho.

Entendamos de uma vez por todas: o preconceito é a cruz mais pesada que alguém pode escolher carregar. Confia em mim, essa cruz não faz sentido. Somos sim, absolutamente iguais. Mesmo sangue pulsando, mesmo coração amando. Todos seres. Alguns mais, outros menos humanos.

Cruel e devastador é, em 2019, ainda existirem pessoas que acreditam nessas “cruzes”.

É ainda vermos pais tirando seus filhos “perfeitos” de perto de crianças com deficiência.

Desesperador é o medo que a diferença do outro causa em algumas pessoas. Sentem-se ameaçadas. Por quê? Como? Não mordo. Minha deficiência não é contagiosa. Juro. O que será que a “imperfeição” causa nas pessoas?

Justamente na semana em que o Stefano me pergunta insistentemente se bilhão é muito, se é mais que mil e milhão, e se existe bilhão de coisas, te digo: somos mais de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo todo.

Falta saber se no teu mundo 1 bilhão existe ou não.

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